A História de Shiro
Dom 21 Fev 2010 - 8:53
Papai Noel você conhece
É o velhinho de Natal
Mas muita gente desconhece
Um velhinho quase igual
Ele viveu em outra era
No outro lado do mundo
É o Velhinho da Primavera
Que tinha sentimento profundo
Hanasaka Jiji era o seu nome
Literalmente o “Velhinho Floração”
É personagem de renome
De uma lenda do Japão
Os japoneses adoram esse velhinho
E por ele tem muito carinho
Pois quando existem dificuldades
Ele indica um florido caminho
Se sua vida é um galho seco
E seu pedido não tem eco
Peça ao velhinho o que quiser
Para uma graça receber
Esta história começa assim:
Há muitos e muitos anos
Vivia um casal de velhinhos
Muito além dos oceanos
Não tinha filho o casal
E para amenizar a solidão
Tratava Shiro como tal
Com carinho e devoção
Shiro não era gente, não,
Era um animal de estimação
Um cachorro de pêlo branco
Dócil, meigo e muito franco
É bom que seja lembrado
Porque assim era chamado
Era branco como suspiro
E branco em japonês é shiro
Certo dia quando o velhinho
Capinava devagarzinho
Shiro cavava sem parar
Latindo no mesmo lugar
Como era tanta a barulheira
Num esforço sem brincadeira
Para o osso desenterrar
O bom velhinho foi ajudar
Cavando o local indicado
Para o osso encontrar
O velho ficou assustado
Com o que acabara de achar
Eram muitas moedas
Todas elas de ouro!
Uma vez desenterradas
Um verdadeiro tesouro!
O velhinho encheu a cesta
Com o reluzente achado
Comemorou dando uma festa
Ao cachorro venerado
Com avanço da idade
E o empenho esforçado
A labuta diária na roça
Tornou-se um fardo pesado
Por isso aquele rico achado
Encontrado no local indicado
Foi uma dádiva divina
Que veio de uma ação canina
Foi assim que de repente
O casal que era tão pobre
Mudou completamente
E até parecia nobre
Acontece que na casa vizinha
Morava um velho ranzinza
Que tinha um coração maldoso
E a fama de ganancioso
Sem perguntar se era bem-vindo
Dirigindo-se a casa do lado
O ganancioso foi logo pedindo
O cachorro Shiro emprestado
Não sabendo dizer não
O bom velhinho à contra-gosto
Deixou o vizinho levar o cão
Para o terreno oposto
Sempre sendo maltratado
Por uma corda foi puxado
Pelo pescoço amarrado
Shiro foi levado arrastado
Na roça do velho malvado
Ainda que solicitado
Shiro permaneceu calado
Deixando o homem irritado
Seu cachorro teimoso
mostre-me onde tem ouro.
Dizia o velho asqueroso
Bufando como um touro
Arrastado por toda horta
Puxando sempre na marra
Em seu lombo chicotadas
O cachorro sentiu a barra.
Numa tremenda agonia
Shiro se esperneava e debatia
A beira de uma taquicardia
Brecando com as patas, resistia.
Mesmo assim o velho maldoso
Num gesto covarde e vergonhoso
Arrastou o cachorro feito escravo
Ferindo seu corpo com agravo
Não suportando o sofrimento
E para expor o seu tormento
Shiro, bravo como nunca se viu
Mostrou os dentes e latiu
Porém, cego pela ganância,
O latido soou com relevância
O cérebro do velho malvado
Pensou ser o local indicado
O invejoso com uma pá na mão
E olhos estalados de ambição.
Cavou feito um doidão
Fazendo logo um buracão
Delirando e suando sem parar
Depois de muito cavar
Ouro que queria não achou
Mas muitas pedras encontrou
Quando já estava desistindo
Viu algo na terra à cintilar
Cavou com as mãos insistindo
Indagando: – Seria ouro a brilhar?
Nisso, a seus pés a terra cedeu
E tudo em sua volta fedeu
O malvado se viu atolando
Num poço de fezes afundando
O desastrado havia encontrado
Uma velha fossa enterrada
E banhado na podre sujeira
Sentiu na pele a fétida meleira
Quando o velho do saiu do buraco
Com expressão de maldito carrasco
Tendo uma pá assassina na mão
Golpeou Shiro sem perdão
No crânio em cheio a pá atingiu
O violento impacto os ossos esmagou
Enquanto o malvado de lá fugiu
Shiro sem vida estendido ficou
O bom velho ao ser notificado
Do ocorrido sentiu-se culpado
Pois um animal muito estimado
Sem recusar ele havia emprestado
Recolhendo o corpo na cesta
Ao cachorro pediu perdão
Pois filho não se empresta
Nem mesmo por milhão
Ao ver o cadáver descer à cova
A velhinha acendeu um incenso
Ao sopro do vento magoada trova
Sentindo na alma vazio imenso
Regado a lágrimas o velho plantou
Semente de pinheiro na sepultura
E o casal chorava diariamente
Lagrimejando na árvore futura
Junto a sepultura do amigo fiel
Chorar todo dia virou ritual
Lágrimas tantas a terra umedeceu
E um fenômeno inesperado acontece
A olhos vistos a árvore cresceu
Em pouco tempo se tornou gigante
Tendo o tronco grosso como apogeu
E uma abela copa verde radiante
Numa bela tardezinha,
Consultando seu coração,
Disse o velho à velhinha
Com muita inspiração:
– O bom espírito de Shiro
Nessa árvore reencarnou
Reside hoje com muita paz
Pois um tronco se tornou
A velhinha então lembrou
Que Shiro gostava de moti
E comia com muita satisfação
A massa de arroz socada no pilão
Disse então o velho: – Bem lembrado
Vamos fazer desse tronco um pilão
Assim o espírito dele fica vinculado
Ao o que mais comia com devoção
Cortado o tronco foi feito um pilão
E um malho para arroz socar
Puseram o arroz glutinoso à cozinhar
Resolveram testar com grande emoção
Arroz cozido, começaram a socar
E houve um milagre no martelar
Da massa, saltaram moedas de ouro
E encheu a casa de tesouro
O casal vizinho, que a tudo assistiu,
Espiando da cerca como sempre fez
Veio pedir o pilão emprestado
Dizendo que agora era sua vez
Sem coragem para dizer não
Mais uma vez o bom velhinho
Atendeu ao incômodo pedido
Emprestando o pilão ao vizinho
O casal invejoso pôs o arroz a pilar
Cheio de ganância, queria faturar
E, para as moedas encontrar,
Foi socando sem parar
Porém, o milagre não acontecia
A massa ficou escura sem explicação
Quanto mais batia, mais fedia
E tornou-se uma imensa podridão
Do pilão saia uma tremenda meleca
Como num pesadelo de deixar careca
Com imundícies jorrando em cachoeira
A casa foi tomada de sujeira
Danado da vida, o velho malvado
Rachou o pilão com o machado
E queimou os pedaços de madeira
Fazendo dela uma bela fogueira
Ao saber do ocorrido,
As cinzas o bom velho foi buscar
Ia levá-las para ao santuário
Para o fiel amigo rezar
Era uma triste manhã de inverno
Carregando as cinzas do pilão
O velhinho caminhava fraterno
Cabisbaixo pela seca vegetação
De repente, uma brisa invernal
Carregou a camada superficial
Das cinzas que estavam na cesta
Espalhando feito festa
Em galhos secos as cinzas pousaram
E os pozinhos em botões se transformaram
Em seguida, desabrocharam todas faceiras
Em lindas flores de cerejeiras
O inverno virou primavera
Quebrando as regras da estação
E a aldeia ficou encantada
Graças ao Velhinho Floração
Nesse dia, passou pela aldeia o governador
Ao saber do milagre, chamou o benfeitor
– Mostre-me sua magia, meu bom ancião
Dizem que com a natureza tu tens comunhão
Com o pedido honrado ficou
E na árvore com o cesto o velho subiu
As cinzas pelos galhos espalhou
E o milagre das flores se repetiu
A árvore seca encheu-se de flores
Cerejeira, símbolo dos samurais,
O governador ficou admirado
Mais que isso, emocionado.
– Apreciar flores de cerejeiras
Fora da primavera, a sua estação,
É um privilégio sem fronteiras
Velhinho, aceite minha gratidão
Como recompensa pelo espetáculo,
Ricos quimonos e moedas de ouro
Recebeu o velhinho oráculo
Aumentando mais o seu tesouro
Novamente o vizinho invejoso,
Que poderoso queria ser,
Pegou o resto das cinzas no forno
E esperou pelo governador no retorno
– Velhinho da Primavera eu sou
Em galhos secos faço dar flor
Assim o ganancioso saiu gritando
Quando o governador veio chegando
Em seu belo cavalo montado
O nobre que amava as cerejeiras
Sem conhecer o velho abusado
Acreditou em suas baboseiras
– Que aldeia fantástica! – disse o senhor
Muitos aqui conhecem a magia da flor!
E, para agradar a visão do governador,
O mesquinho jogou cinzas a todo vapor
Porém, nada aconteceu
Por mais que o velho tentasse
Nenhum galho floresceu
E criou-se um grande impasse
– Homem, que está esperando?
Quero ver as flores de cerejeiras.
Disse o governador esbravejando
Com o velho que tentava de mil maneiras
Desesperado, o rufião
Jogou cinzas de montão
Mas, levado pelo vento,
Provocou um grande tormento
As cinzas foram parar
Nos olhos do governador
E de toda comitiva,
Provocando grande dor
Até o cavalo do nobre
Um banho de cinzas levou
Levantando as patas no ar
Quase o governador derrubou
– Em toda minha vida
Nunca vi tamanha afronta
Que prendam esse impostor
O atrevimento passou da conta
Conta a lenda que o velho insolente,
Com medo de perder a cabeça,
Começou a raciocinar como gente
E de joelhos fez promessa
Ao governador pediu perdão
Jurando nunca mais bancar o vilão
Prometeu não cobiçar coisas alheias
E ajudar todos da aldeia
A história de Shiro ao governador contou
Com lágrimas nos olhos a chorar
Dizendo que o cachorro castigou
E que pela alma do animal ia orar
Depois de repreendê-lo duramente
O nobre libertou o velhinho
Para cultuar certamente
O arrependimento no caminho
Diz uma crença japonesa
Endossado com muita certeza:
“O castigo dos mortos é mais abrasivo
que os castigo dos vivos”
Esta é a história do cachorro Shiro
Que, mesmo depois de morto,
Não esqueceu a dívida de gratidão
Com o Velhinho Floração
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